De ‘couro vegano’ a lixo oceânico: como a indústria do luxo está se reinventando

A conscientização a respeito da sustentabilidade está mudando rapidamente os hábitos de consumo. Mas uma indústria era indiferente – até agora.

Tradicionalmente, o setor de luxo é cercado de segredos como forma de criar um ar de mistério e cobiça, mas a geração mais jovem de consumidores de artigos de luxo espera e exige transparência. Os millennials são importantes para essa indústria: são a maior geração do mundo, e seu poder de compra global será em breve maior do que qualquer outra geração, de acordo com as previsões do World Data Lab.

Eles também estão dispostos a gastar mais em produtos sustentáveis, segundo um relatório de 2018 da Nielsen. Uma análise recente da Deloitte sobre jovens consumidores de artigos de luxo revelou que quase um terço considerava as credenciais éticas de uma marca antes de efetuar uma compra.

Para seduzir essa nova clientela, a indústria precisa se adaptar.

“Os consumidores, especialmente os millennials, que são o motor de crescimento da demanda de luxo, estão se tornando cada vez mais conscientes e envolvidos em questões de sustentabilidade. Portanto, a sustentabilidade está influenciando mais do que seus hábitos de consumo”, diz Mario Ortelli, consultor do setor de luxo.

Mas a mudança não está sendo impulsionada apenas pelos consumidores, há também uma pressão dos investidores.

“Eles dão muita atenção ao perfil de risco de seus investimentos e estão focados na sustentabilidade… porque um histórico negativo de sustentabilidade pode causar sérios danos à marca em que eles investem.”

Algumas empresas estão transformando o desperdício da indústria de luxo em oportunidades de negócio. O valor das roupas sem uso nos armários foi estimado em cerca de 30 bilhões de libras (quase R$ 150 bilhões), segundo a organização de sustentabilidade britânica WRAP. Calcula-se ainda que 140 milhões de libras (quase R$ 700 milhões) no valor de roupas sejam jogados fora a cada ano.

Os sites de vendas de mercadorias de segunda mão – os chamados brechós online – estão crescendo quase 24 vezes mais rápido do que o varejo como um todo. A expansão da revenda de artigos de luxo foi uma das maiores mudanças da indústria nos últimos anos. A empresa americana The RealReal e o site Vestiaire Collective estão entre as histórias de sucesso.

Julie Wainwright, que fundou a The RealReal em 2011, acredita que os consumidores veem cada vez mais a compra de artigos de luxo como uma escolha sustentável:

“Muitos deixaram para trás o ‘fast fashion’, que é prejudicial ao meio ambiente e não tem valor de revenda, em comparação com roupas de grife que são sustentáveis e você pode ganhar dinheiro quando passa adiante.”

Segundo ela, os principais estilistas de luxo também estão começando a entender os benefícios desta prática.

“As marcas estão começando a perceber que os sites de revenda estão ajudando a ampliar o alcance e a cobiça por suas marcas”, acrescenta.

“Somos parte da economia circular e oferecemos uma nova maneira de enxergar a sustentabilidade.”

A utilização do estoque que não foi vendido e das sobras de material usado na confecção é outra vertente explorada por estilistas que buscam soluções criativas e sustentáveis. A Lou Dallas lançou na semana de moda de Nova York uma coleção conectada com a geração Z – feita 90% de sobras estoque e corantes naturais.

O desperdício na indústria de luxo também foi criticado pela marca francesa Vetements. Durante a semana de moda de Londres, a grife decorou as vitrines da Harrods com pilhas de roupas usadas. Os funcionários da loja foram encorajados a doar roupas que não usavam mais para a vitrine – que foram destinadas posteriormente à Sociedade Nacional de Prevenção de Crueldade a Crianças.

Acompanhada por imagens que mostravam aterros sanitários repletos de lixo têxtil, a instalação teve como objetivo incentivar os clientes da loja a comprar menos e a pensar mais no longo prazo. A instalação já foi reproduzida em outras lojas do tipo em todo o mundo.

A marca de perfumes Etat Libre d’Orange desafia os conceitos de luxo. Em maio de 2018, lançou o Les Fleurs du Déchet (“as flores do lixo”, em tradução livre), fragrância criada a partir de resíduos da indústria de perfumes. Desenvolvida em colaboração com a Ogilvy Paris, a essência usa subprodutos reciclados, incluindo purê de maçã, serragem de cedro e sobras de pétalas de rosa.

Matérias-primas cobiçadas – como peles, seda, couro e pedras preciosas – sempre foram essenciais para os artigos de luxo, mas até isso está mudando.

O Banco Mundial estima que um quinto da poluição total da água industrial do mundo é provocada pelo tratamento e tingimento têxtil. Por isso, as principais marcas de luxo estão começando a testar fibras mais sustentáveis de alta tecnologia.

A Burberry e a Kering estão entre as grifes de luxo que pensam no futuro de seus negócios, investindo no desenvolvimento de novos materiais e tecnologias, como couro in vitro – criado em laboratório – e impressão 3D.

Ortelli diz que o comportamento em relação aos materiais usados na indústria de luxo está mudando, mas ainda há um caminho a percorrer antes de se tornarem convencionais:

“Assim que a tecnologia oferecer produtos com um padrão de qualidade coerente com a alta expectativa estabelecida pelas marcas de luxo, espero que possamos ver boa parte dos artigos de luxo sendo produzidos com materiais mais sustentáveis”, afirma.

A lei da natureza

Na última década, uma série de start-ups assumiu o desafio de criar em laboratório tecidos de luxo ambientalmente responsáveis.

A empresa de biotecnologia Bolt Threads, com sede em San Francisco, nos EUA, produziu seda de aranha sintética – os cientistas separaram a proteína da fibra e a recriaram a partir de levedura e açúcar. Já a companhia francesa Pili cultiva bactérias para produzir corantes naturais renováveis.

O couro chamado Zoa, criado pelo laboratório americano de biotecnologia Modern Meadow, usa colágeno produzido por uma levedura modificada geneticamente.

E as sobras de abacaxi, cascas de maçã e cogumelos são apenas alguns dos materiais inovadores que estão sendo testados na corrida para criar “couros veganos” de luxo.

Em 2017, Stella McCartney fez uma parceria com a Parley for the Oceans, movimento que trabalha pela preservação e limpeza dos oceanos, para usar resíduos plásticos recuperados do mar na fabricação de tênis.

Há uma sensação cada vez maior de que o luxo não pode mais operar dentro de uma bolha. A grife Gabriela Hearst – uma das favoritas da duquesa de Sussex, Meghan Markle – utiliza métodos de produção sustentáveis. A estilista também associa publicamente sua marca a causas políticas. Hearst criou um suéter que usou na Marcha das Mulheres em Washington em 2017.

“Nunca senti a necessidade de silenciar minhas opiniões… nós temos uma bússola moral e você tem que defender o que você acredita em busca de um futuro melhor”, diz ela.

“Eu prefiro um negócio que cresce organicamente, mas com integridade.”

Criar uma grife que seja sustentável e de luxo pode ser, no entanto, um desafio. Mais da metade dos consumidores (58%) acha que os produtos sustentáveis são mais “hippies” e menos luxuosos, de acordo com um relatório de 2018 da agência de publicidade JWT.

Para conquistar a clientela de luxo, não basta ter valores sustentáveis e éticos, o produto precisa ser cobiçado, afirma Hassan Pierre, cofundador da Maison-de-Mode, varejista que vende artigos de luxo de marcas eticamente responsáveis, como Osklen, Tome e Eleven Six.

“Para nós, a estética de um produto sempre vem em primeiro lugar porque se algo não for bonito, as pessoas não vão querer comprar… [mas] naturalmente as marcas (que vendemos) têm que aderir aos nossos padrões éticos de moda”.

Pierre acrescenta que é mais fácil para novas marcas de luxo incorporarem um modelo de negócios focado na sustentabilidade.

“Acho que é muito difícil para as empresas que têm cerca de 10, 20 ou 50 anos reestruturarem seu modo de operação para serem sustentáveis”, avalia.

“Elas têm que considerar a sustentabilidade dentro de suas cadeias de suprimentos, tecidos, as comunidades em que trabalham”.

A holding francesa Kering, que engloba marcas como Balenciaga, Gucci e Yves Saint Laurent, prometeu transformar seu próprio negócio e a indústria de luxo em todos os níveis.

“Vemos a sustentabilidade como uma necessidade, pois a sustentabilidade e o luxo são a mesma coisa”, diz o planejamento estratégico do grupo para 2025.

Entre as iniciativas, está o lançamento de uma ferramenta baseada na metodologia de mensuração de ganhos e perdas ambientais (EP&L, na sigla em inglês). Chamado ‘My EP&L’, o programa do aplicativo chinês We Chat calcula o impacto da moda no meio ambiente, informando aos consumidores sobre o custo ambiental de suas compras.

Em novembro, o conglomerado suíço de artigos de luxo Richemont lançou uma marca nova pela primeira vez. A Baume, marca “irmã” da Baume & Mercier, conhecida pelos relógios de luxo, é voltada especialmente para os clientes com preocupações éticas.

Os relógios da Baume evitam o uso de pedras preciosas e couros de animais caros, priorizando pulseiras de relógio veganas, embalagens recicláveis e movimentos a quartzo gerados com o menor número de peças possível, para que possam ser facilmente desmontados e reciclados. Vendidos por cerca de US$ 500, eles se encontram no nicho “acessível” do mercado de relógios de luxo, mas representam um passo positivo para a companhia.

Gabriela Hearst, que lançou sua marca em 2015, acredita que sustentabilidade é uma possibilidade criativa. Ela estima que 99% dos tecidos usados em suas coleções são sustentáveis, incluindo viscose biodegradável. Recentemente, ela também desenvolveu embalagens biodegradáveis em parceria com a start-up israelense de bioplásticos TIPA. A Hearst triplicou seu negócio atacadista em um ano.

“A sustentabilidade é uma prática – é difícil no começo, mas uma vez que você começa a atingir as metas, você consegue aproveitar”, diz ela.

“A restrição é boa: parece contraintuitivo, mas quando você coloca limites na criatividade, ela se torna poderosa.”

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/

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